'A Liberdade de expressão termina quando afeta o outro", diz sociólogo

Nesta quinta-feira (14) é comemorado no mundo todo o dia da liberdade de pensamento. Esse dia foi instituido para lembrar a Revolução Francesa e que consta nos livros de história como a revolução defensora dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.  

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A partir da revolução, direitos essenciais para o ser humano deram origem a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a qual inspirou, mais tarde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Na França, o dia é celebrado com um feriado nacional e princípios, como a liberdade de pensamento, são relembrados nesta data.

Pensando nisso, o Portal NE10 conversou com o pesquisador do pós-doutorado em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos Araújo, sobre questões como liberdade de pensamento, direitos LGBT e a relação do Estado Islâmico com a liberdade de expressão.

 

NE10: O dia da liberdade de pensamento é comemorado no mesmo dia da Tomada da Bastilha, o estopim da Revolução Francesa. Por que a revolução é tão importante ainda nos dias atuais?

MA: Principalmente porque ela representou o fim do regime absolutista e difundiu mundo afora os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade vinculados aos regimes políticos, isto é, a filosofia iluminista já apregoava tais ideais, mas foi a revolução francesa que mostrou ao mundo que, ao menos na teoria, eles poderiam ser postos em prática pelas esferas políticas, ou melhor, pelos ideais republicanos, burgueses, democráticos e seculares. As origens dos valores democráticos aqui no Ocidente (da forma como os concebemos na atualidade) tem suas origens na Revolução Francesa e isso é um dos seus mais importantes legados.  

 

NE10: No Brasil, ultimamente, várias pessoas têm se utilizado do princípio da liberdade de pensamento para divulgar discursos de ódio contra minorias, como o público LGBT. O fato da liberdade de pensamento ser garantida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos permite que aceitemos todo tipo de discurso?

MA: Muitas pessoas não entendem que liberdade de expressão não significa ter o direito de interferir negativamente na vida de terceiros. O caso do Brasil é muito problemático pois se trata de um país onde igrejas evangélicas e segmentos católicos bastante conservadores acham que possuem o "direito" de condenar a homossexualidade ou a diversidade de gênero com base numa ideia distorcida de liberdade de expressão.

Por exemplo: em 1990 a Organização mundial da saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de patologias e em 2014 lançou uma portaria a qual deixa claro que os direitos LGBT são direitos humanos. Então continuar dizendo direta ou indiretamente que as pessoas LGBT são doentes não justifica como atos ligados à "liberdade de expressão", mas sim crimes de incitação ao ódio e à LGBTfobia.

Não concordo quando alguns pastores dizem que o Brasil vive uma "crescente onda" de "cristofobia e heterofobia" e uma "ditadura do politicamente correto". Para mim, o que ocorre são ondas crescentes de desrespeito à vida humana e ao entendimento de que a liberdade de se expressar termina quando passa a afetar a vida de outras pessoas. É perigoso negligenciar isso e caminhar cegamente rumo a um Estado teocrático, no qual os cristãos seriam mais cidadãos do que outros segmentos populacionais, no sentido de que teriam mais liberdade (e consequentemente mais poder) do que outros grupos sociais. 

 

NE10: Há alguma diferença entre liberdade de expressão e  liberdade de pensamento ou as duas têm o mesmo significado?

MA: A liberdade de expressão se refere, grosso modo, ao direito de expressar publicamente ideias. A liberdade de pensamento não envolve, necessariamente, este aspecto de publicizar as ideias. Alguns jovens podem ler o livro "Verdade sufocada", de Carlos Alberto Brilhante Ustra,  e discutir entre seus respectivos grupos de amigos, isso constitui liberdade de pensamento.No entanto, se estes mesmos jovens organizarem uma manifestação para fazer apologia às ideias deste ex-militar, isso seria um ato que envolveria expressão, ou melhor, teoricamente o "direito" de se expressar.

O caso da homenagem que o deputado Jair Bolsonaro fez ao coronel Ustra no dia 17 de abril de 2016 é emblemático disso: este deputado possui liberdade de pensamento para achar que este coronel teria sido um herói nacional, mas a partir do momento em que o homenageou publicamente na Câmara dos deputados, se valeu de sua liberdade de expressão para fazer, na minha opinião, apologia ao crime de tortura, que é um crime de lesa-humanidade.  

 

NE10: Apesar de ser um direito fundamental de todo o ser humano, a liberdade de pensamento ainda é ignorada por muitos, como pelo Estado Islâmico e os territórios que domina. O que o mundo e nós podemos fazer para mudar esta realidade?

MA:  Esta negligencia envolve relações complexas, hegemônicas e geopolíticas de poder. O Daesh (acrônimo em árabe para o que chamamos de Estado islâmico) não surgiu do dia para a noite, ele foi "tolerado" por muitas democracias ocidentais e passou a ser veementemente condenado quando provocou a crise humanitária de refugiados que vivemos aqui na Europa.

Muitos líderes políticos de países do Ocidente lutam por defender a liberdade de pensamento e de expressão só quando isso convém aos seus respectivos interesses econômicos. É importante reconhecer isso para entender que a crescente islamofobia que existe na Europa, nos EUA e também na América do Sul se deve, significativamente, ao desconhecimento acerca da heterogeneidade existente no "mundo muçulmano".

Tal desconhecimento se perpetua, entre outros fatores, porque é conveniente aos interesses de boa parte das elites políticas e econômicas, algumas das quais possuem vínculos e parcerias com as redes financeiras internacionais que o Daesh e outras organizações terroristas articulam mundo afora. 

 

NE10: A liberdade de pensamento está intimamente ligada a democracia

MA: Sim, existe historicamente esta vinculação e ela pode ser comprovada se lermos atentamente a algumas obras clássicas de importantes autores como o francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) ou a alemã Hannah Arendt (1906-1975). Bem antes destes dois citados autores, o filósofo grego Platão, na sua clássica obra "A República" apresenta elementos reflexivos que nos permitem relacionar a ideia contemporânea que temos de "liberdade de expressão" à concepção histórica de justiça.