A mulher e a lei

Estupro: um crime hediondo que poderá passar a ser imprescritível

Por Gleide Ângelo
Por Gleide Ângelo
Publicado em 26/02/2018 às 10:57
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A dificuldade para denunciar é muito grande, porque ainda há muito preconceito, onde o estuprador muitas vezes é visto como uma pessoa que está no papel de "homem" / Foto: Heudes Régis/JC Imagem

A dificuldade para denunciar é muito grande, porque ainda há muito preconceito, onde o estuprador muitas vezes é visto como uma pessoa que está no papel de "homem" Foto: Heudes Régis/JC Imagem

No artigo de hoje falarei sobre o crime de estupro, um crime repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso e objetivamente grave. A gravidade desse crime é observada nas mudanças legislativas que tentam endurecer as penas com o fim de coibi-lo. No ano de 2009, o crime de estupro passou a ser hediondo e o tipo penal modificou, incluindo diversos tipos de condutas, e também homens como vítimas, conforme o art. 213 do CPB, "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso - pena de 6 a 10 anos". 

Porém, mesmo com as leis mais rígidas, esse crime continua ocorrendo de forma contínua na sociedade. Muitas vítimas se calam diante dessa monstruosidade por diversos motivos: medo, vergonha, julgamento, revitimização, etc. Com o silêncio das vítimas, os criminosos continuam agindo, acreditando na impunidade. Pensando exatamente nesse silêncio da vítima, existe a Proposta de Emenda a Constituição (PEC 64/2016) que já foi aprovada no Senado e seguiu para a Câmara dos Deputados em 08/2017 para votação. Essa PEC é para tornar o crime de estupro, imprescritível.

A importância da imprescritibilidade do crime de estupro é porque muitas vezes a vítima tem uma relação familiar com o agressor, o que a faz temer a denunciar. Esses crimes, em sua maior parte são crimes de proximidade, aqueles onde agressor e vítima são conhecidos (parentes, vizinhos, amigos, etc.). Se a PEC for aprovada na Câmara dos Deputados, a vítima poderá denunciar o criminoso há qualquer tempo, sem se preocupar com o prazo de prescrição do crime.

LILIAN NUNCA DENUNCIOU: 'SEI QUE SERIA JULGADA E DESACREDITADA'

A dor de Lilian é a mesma de muitas mulheres vítimas de estupro, mulheres violentadas, ameaçadas, destruídas e julgadas que nasceram em uma sociedade onde a mulher passa de vítima a culpada. Onde a mulher é estuprada e questionada por toda a sociedade com milhões de porquês. Cada cidadão brasileiro machista faz uma pergunta machista: porque ela estava naquele local? com aquela roupa? porque não correu? não gritou? não denunciou? E lá se vão os infinitos porquês. Ninguém analisa a ação do agressor, apenas a falta de ação da vítima, completamente justificada pela dor, pelo trauma, pela vergonha, pela impotência e pelo sofrimento de ter nascido mulher.

Tudo isso foi vivenciado por Lilian, que ainda envergonhada disse,"nunca denunciei o agressor que me estuprou, e não pretendo denunciar. Primeiro porque sei que muita gente iria me julgar, dizer que estou mentindo, que criei tudo aquilo. Segundo, pelo vergonha de tornar público algo que me destruiu, me fez sentir um objeto, um nada. A minha vida se divide em duas fases, uma antes da violência e outra depois. Hoje em dia, eu não me reconheço". A dor de Lilian ainda é muito visível, mesmo assim tentei conversar e convencê-la a denunciar o criminoso.

Conversamos muito, e de vez em quando ela ficava me olhando e perguntava, "porque você acreditaria em mim? vivemos em uma sociedade onde todos dizem que as mulheres são mentirosas, vagabundas, oportunistas e aproveitadoras". Aquelas palavras de Lilian me fizeram ver e pensar o quanto ela sofreu e foi julgada por todos. Ela disse que os próprios amigos duvidaram dela, sempre perguntando se ela tinha certeza do ocorrido, se ela não estava com raiva do agressor e potencializando os fatos.

No caso de Lilian, ela foi estuprada por um vizinho, um homem rico e muito amigo da família. Isso ocorreu por seis anos. Lilian tinha apenas 14 anos quando a violência começou, sempre ameaçada de morte, ela tinha medo de falar, pois tinha certeza que seus pais não iriam acreditar. Lilian relembra, "Certa vez, tentei falar para minha mãe, mas quando comecei a falar, ela foi logo dizendo, você está louca? ele não seria capaz disso. Ele é um homem correto, honesto. E a mãe de Lilian terminou com a seguinte frase: o que você está fazendo para ele ficar olhando para você? usando esses shorts curtos? se vista como uma moça decente".

Esses relatos são muito mais comuns do que a gente pensa. A dificuldade para denunciar é muito grande, porque ainda há muito preconceito, onde o estuprador muitas vezes é visto como uma pessoa que está no papel de "homem". E a mulher é vista como a pessoa que deu causa ao homem exercer o seu papel de "homem", com roupas curtas, em bares, saindo sozinha à noite, etc. Isso tudo é tão absurdo, mas é real em uma sociedade desigual, machista e patriarcal. As pessoas não conseguem enxergar que as mulheres vítimas de estupro não denunciam por medo, por vergonha. A sociedade prefere pensar que as mulheres não denunciam porque foram culpadas, ou porque estão mentindo. Não é fácil ser mulher nessa sociedade.

No final, depois de conversar muito com Lilian, consegui com que ela aceitasse ir a um Centro de Referência da Mulher para ter um atendimento com a equipe psicossocial. Quando foi embora, Lilian olhou para mim e disse, "estou indo buscar tratamento, mas na verdade quem precisa se tratar não sou eu, é a nossa sociedade, ela está doente". E foi embora. Muito forte essa frase de Lilian, que nos faz pensar nos conceitos e na cultura machista em que vivemos. Onde as mulheres são espancadas, agredidas, violentadas, como se fossem objetos e os agressores tivessem sua posse e sua propriedade. Já está mais do que na hora de dar uma basta nessa violência.

Amiga, se você está passando pelo mesmo problema de Lilian, não fique paralisada, denuncie o agressor. O crime de estupro é o crime mais covarde que existe contra a mulher. É um modo covarde de impor a propriedade individual do homem sobre a mulher. Você não é objeto e não pertence a ninguém. O seu corpo é seu, e não permita que ninguém se aposse dele sem o seu consentimento. Não deixe o medo, a vergonha te paralisar. Busque por justiça. Pense em quantas mulheres já foram e serão vítimas desse agressor. Se fortaleça, dê o primeiro passo e denuncie. O sentimento de justiça te fortalecerá a seguir com a consciência de que o criminoso não ficou impune e não fará outras vítimas. Força, siga em frente!

VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHA!

EM QUAIS ÓRGÃOS BUSCAR AJUDA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:

  • Central de atendimento Cidadã pernambucana 0800.281.8187
  • Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal - 180
  • Polícia - 190 (se a violência estiver ocorrendo) - 190 MULHER
  • Centro de Referência Clarice Lispector – (81) 3355.3008/ 3009/ 3010
  • Centro de Referência da Mulher Maristela Just - (81) 3468-2485
  • Centro de Referência da Mulher Márcia Dangremon - 0800.281.2008
  • Centro de Referência Maria Purcina Siqueira Souto de Atendimento à Mulher – (81) 3524.9107

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