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Direitos LGBT: do casamento ao enfrentamento da discriminação

Sérgio Costa Floro*
Sérgio Costa Floro*
Publicado em 28/06/2015 às 15:26
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#LoveWins tomou conta do discurso daqueles que lutam por igualdade entre todos  / Foto: AFP

#LoveWins tomou conta do discurso daqueles que lutam por igualdade entre todos Foto: AFP

A decisão da suprema corte dos Estados Unidos essa semana reforça algo que nosso Supremo Tribunal Federal já afirmou em 2011. Além de garantir direitos iguais aos casais formados por duas pessoas do mesmo gênero, a corte reafirma o óbvio: todas as pessoas têm os mesmos direitos, não importa a sua orientação sexual. O próximo passo é enfrentar efetivamente as discriminações e violências.

Casamento é entre pessoa e pessoa

Apesar das diferenças nos procedimentos legais que culminaram na garantia desse direito, no Brasil, Estados Unidos e em mais 22 países, duas pessoas podem se casar, não importa se elas são do mesmo sexo ou de sexos diferentes. Nos outros 22 países existem outras formas de união civil. Esse direito foi garantido de diversas formas e nem sempre em total pé de igualdade com as uniões entre pessoas de sexo diferente.

A melhor forma de evitar tratamento discriminatório é aplicar a mesma lei a todos os casais. É assim no Brasil, EUA, Argentina, Espanha e outros países. Infelizmente, em alguns países as uniões entre pessoas do mesmo sexo estão em um patamar abaixo das demais. Alguns criaram uma nova modalidade de união civil especialmente para casais do mesmo sexo, outros incluíram exceções aos direitos decorrentes de casamentos de pessoas do mesmo gênero.

Em Portugal, por exemplo, o Parlamento aprovou em 2010 o casamento, mas não o direito à paternidade/maternidade, pois negou a possibilidade de adoção conjunta por esses casais. Em 2012 o legislativo português legalizou a adoção unilateral, quando um cônjuge adota o filho ou filha do outro cônjuge, deixando de ser padrasto ou madrasta e tornando-se legalmente o que já são na realidade, pai ou mãe.

A Suprema Corte norte-americana foi também o órgão responsável pela legalização em todo o país dos casamentos entre pessoas de “raças” diferentes. Até 1967, em 17 estados dos EUA era ilegal uma pessoa considerada branca casar com uma considerada “de cor”. Uma decisão da Corte pôs fim a essa outra forma de discriminação também expressamente apoiada pela lei de alguns estados.

Curiosamente, argumentos contrários ao casamento inter-racial usados naquela época surgem hoje nos discursos de opositores ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Um juiz da Virgínia, que condenou um homem branco e uma mulher negra à prisão por terem se casado em outro estado, argumentou que não era a vontade divina que as pessoas de diferentes “raças” se unissem.

Pra o casamento igualitário valer mesmo, ainda precisa de lei no Brasil?

Muita gente acha que por se tratar de uma decisão do poder judiciário, o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil ainda não é um direito garantido, que sem uma lei que regulamente ainda haveria uma instabilidade legal. Não é verdade. A decisão do STF só pode ser alterada por outra decisão posterior do Tribunal, o que é extremamente improvável, já que foi uma decisão unânime e com argumentos muito fortes.

Em vários países o poder judiciário desempenhou um papel importante na legalização do casamento entre homossexuais

Em vários países o poder judiciário desempenhou um papel importante na legalização do casamento entre homossexuais

O principal é que o reconhecimento das uniões homoafetivas como famílias não diminui ou retira direitos de ninguém, apenas existem pessoas ganhando mais cidadania e dignidade, ninguém perde. Não é necessário equilibrar direitos fundamentais, como no caso de liberar biografias não autorizadas de pessoas famosas, quando os direitos de expressão e informação estão de um lado e o direito à privacidade de outro lado.

No Brasil, pode parecer estranho que Direitos Fundamentais sejam garantidos através de decisões da Justiça, mas isso já aconteceu por aqui com outros temas. Em 2012, o STF assegurou a possibilidade da interrupção terapêutica da gestação no caso de anencefalia fetal. Em 2007, o Tribunal garantiu o exercício do direito à greve dos servidores públicos, segundo as regras aplicáveis da lei que regulamenta a greve na iniciativa privada.

Em vários países o poder judiciário desempenhou um papel importante na legalização do casamento entre homossexuais. Além de Brasil e EUA, a Suprema Corte do México decidiu nesse sentido esse mês. Na Argentina as decisões que permitiram casamentos em algumas províncias precederam a atuação do Congresso.

Até hoje esses temas permanecem sem leis votadas pelo legislativo. A omissão do Congresso não pode transformar Direitos Fundamentais garantidos pela Constituição em letra morta. É obrigação dos representantes eleitos regulamentar direitos constitucionais, mas se eles se recusam a cumprir esse dever, a sua inércia, ou mesmo a atuação contrária aos Direitos Fundamentais, não pode servir para negar direitos aos cidadãos.

Essa força das decisões do STF é constitucional e deve ser respeitada. Quando nossa Corte Suprema ativamente garante Direitos Fundamentais já contidos na Constituição, nossa democracia se fortalece. Os direitos das minorias tendem a ser ignorados pela maioria, tanto na sociedade em geral como por seus representantes eleitos. E esse descaso não pode ser tolerado em um país que tem a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos.

Mas a decisão do STF foi sobre casamento ou união estável?

Em maio de 2011 o STF reconheceu as uniões homoafetivas, com os mesmos efeitos das uniões estáveis entre pessoas de sexo diferente. Entre esses efeitos encontra-se a conversão da união em casamento. Afinal, nossa constituição reconhece igualmente como família a união civil decorrente de casamento ou de união estável.

A melhor forma de evitar tratamento discriminatório é aplicar a mesma lei a todos os casais

A melhor forma de evitar tratamento discriminatório é aplicar a mesma lei a todos os casais

Como alguns juízes insistiam em impor limites aos efeitos da decisão do STF que não foram criados na decisão do Tribunal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por supervisionar a atuação do poder judiciário, emitiu a resolução 175 em maio de 2013 determinando a obrigatoriedade de todos os cartórios, juízes e demais autoridades de realizar a conversão das uniões em casamento.

Importante lembrar que casamento e união estável são duas formas pelas quais duas pessoas podem se unir civilmente no Brasil. A decisão do CNJ também determina às mesmas autoridades que realizem os casamentos de pessoas do mesmo sexo de forma direta, já que não há justificativa plausível para exigir a realização do registro de um tipo de união civil como requisito para outro tipo de união civil.

Ser homossexual é natural

O casamento pode ser uma forma conservadora de formação de família, mas ao garantir o direito de lésbicas, gays e bissexuais de se casarem com pessoas do mesmo sexo, toda a população LGBT ganha o reconhecimento de que não são cidadãos de segunda classe e não podem ser tratados de forma diferente.

Os ministros do STF votaram por unanimidade em favor do reconhecimento de que casais formados por pessoas do mesmo sexo (além de seus filhos e filhas, no caso de serem pais ou mães) são uma entidade familiar merecedora da mesma proteção constitucional dada às outras famílias.

Essa decisão beneficia a todas as pessoas LGBT, porque significa que o Estado reafirmou a dignidade não apenas das pessoas LGBT afetivamente unidas, mas de todas, afirmando em rede nacional e em acórdão judicial que a sexualidade (seja entre iguais ou diferentes) é expressão da natureza humana e a sua prática é uma liberdade que o Estado e a sociedade devem respeitar.

Cai por terra a visão anacrônica de que qualquer forma de sexualidade diferente da heterossexualidade seria uma doença imoral a ser revertida ou curada. O amor consensual entre adultos não é doença e qualquer projeto de lei que tenha essa noção como base está no mínimo 25 anos atrasado. Já se passou um quarto de século desde 17 de maio de 1990, quando a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças.

Igualdade com discriminação não é igualdade plena

Mesmo após as autoridades médicas e o poder judiciário entenderem que não tem nada de errado com as pessoas LGBT e que elas possuem os mesmos direitos que as outras pessoas, a discriminação e o preconceito ainda são fortes no Brasil. Muitas pessoas ainda sofrem violências e humilhações em suas famílias, escolas, trabalho, em serviços públicos e nas ruas.

Todo grupo da nossa sociedade que se encontre em uma situação como essa merece ações de proteção do Estado contra os efeitos perversos da discriminação na sociedade. O Estado tem o dever de tomar todas as ações necessárias para proteger todos os seus cidadãos, incluindo as pessoas LGBT.

É preciso combater os preconceitos e violações de direitos fundamentais de lésbicas, gays, travestis, transexuais e bissexuais nas escolas, nos serviços públicos, no ambiente de trabalho e mesmo dentro das casas. A privacidade do lar não pode servir de escudo para o abuso físico ou psicológico das pessoas.

A Lei Maria da Penha já deixou isso claro ao proteger as mulheres de várias violências, assim como as leis de proteção das crianças e adolescentes, como a recente Lei Menino Bernardo, que proíbe castigos físicos. Essas leis deixam claro que tradições violentas ou discriminatórias não têm lugar no século XXI, seja dentro ou fora de casa.

A discussão acerca da criminalização da homofobia busca dar essa resposta legal a esse mal social, mas não é a única forma de enfrentar as discriminações por orientação sexual ou identidade de gênero. A promoção da igualdade deve acontecer também em outros espaços, especialmente nas escolas. 

A educação é a melhor forma de mudar o futuro do país e garantir a inclusão das pessoas LGBT na sociedade é papel dos governos e da sociedade, incluindo educadores e gestores escolares. A escola precisa deixar de ser um espaço de exclusão de diferentes e passar a ser um ambiente de inclusão da diversidade humana.

*Sérgio Costa Floro é Bacharel em Relações Internacionais. Atua na área de Direito à Educação na ActionAid Brasil e na Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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