Violência contra mulher

Pernambucanas contam como é conviver com o trauma do abuso sexual

MARÍLIA BANHOLZER
MARÍLIA BANHOLZER
Publicado em 02/06/2016 às 18:22
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Vítimas de estupro e abuso sexual contam que o trauma é algo que jamais vão esquecer, mas precisam seguir a vida  / Foto: Rodrigo Lôbo/Acervo JC Imagem

Vítimas de estupro e abuso sexual contam que o trauma é algo que jamais vão esquecer, mas precisam seguir a vida Foto: Rodrigo Lôbo/Acervo JC Imagem

Aos 20 anos, faltando seis meses para se casar, uma jovem recifense foi ao shopping da cidade para uma tarde de compras. Por volta das 14h30 ela foi abordada por dois homens quando estacionava o carro. Armados, os bandidos a fizeram deixar o centro de compras e dirigir até um terreno onde havia um campo de futebol no bairro de Barra de Jangada, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. Chegando ao local um terceiro homem a esperava. No local deserto, ela foi estuprada pelo trio que, após o crime, tentava decidir sobre matar ou não a vítima.

Essa história de estupro coletivo aconteceu há quase três décadas, mas até hoje P.F*, agora com 50 anos, não consegue esquecer daquele momento de violência. "A vida continua, a vida segue, mas aquela marca fica ali. É algo que você não esquece nunca. Tem momentos que as lembranças voltam muito fortes, mesmo sendo liberada pelas psicólogas que me acompanharam."

A violência cometida contra P.F foi de tanta brutalidade que a jovem precisou se submeter a uma cirurgia de reconstrução anal. "Quando chegamos ao local até onde os homens me fizeram dirigir, eles roubaram tudo que eu tinha e deitaram o banco do carro. Dois me estupraram e quando chegou a vez do terceiro um carro da polícia passou e os assustou. Aquele que não conseguiu me penetrar ficou com muito ódio e usou uma chave de fenda que havia no carro para riscar todo meu corpo. Lembro que ele me beijava, apalpava, colocava o dedo na minha vagina. Tudo na mala do carro. Na época já foi qualificado como estupro coletivo", relembrou.

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada três horas. No Estado, cinco pernambucanas são estupradas por dia
O caso de P.F não ganhou repercussão nacional, mas mudou a vida de uma mulher e sua família. Conviver com o trauma não é nada fácil, mas algo pelo que ela luta diariamente. "Por acaso hoje eu preciso passar pelo local do estupro no caminho casa/trabalho. Se hoje eu consigo falar sobre esse tema é às custas de um acompanhamento psicológico e porque eu encontrei na igreja muito conforto. Além disso, minha família me deu muito apoio, inclusive o meu ex-marido que foi muito paciente comigo."

Após ser deixada para trás pelos estupradores, P.F passou por exames médicos, tomou coquetéis para evitar gravidez e doenças venéreas. Duas semanas depois, viu o trio ser preso enquanto tentava cometer o mesmo crime com outra mulher. O casamento não foi adiado seguindo orientações das psicólogas, mas o início do matrimônio não foi nada tranquilo.

"Minhas fotos do casamento são tristes. Minha lua de mel não teve noite de núpcias. Um mês após o casamento tentamos ter nossa primeira relação sexual, não foi fácil. Eu chorei por três dias e meu esposo disse que não aguentava me ver sofrer daquele jeito, então não tentaria nada mais até que eu o procurasse. Lutei contra meus traumas, tentei seguir a vida, mas ainda hoje não é algo que seja tão simples. Sexo anal, por exemplo, é algo que não quero nem pensar", contou P.F.

Mãe de três filhos, sendo duas meninas do primeiro casamento, P.F não gosta de dirigir sozinha à noite, evita programações noturnas, tem medo de parar nos semáforos. Por diversas vezes ela luta contra as lembranças que insistem em voltar. "Às vezes eu estou numa praia, por exemplo, e aquelas cenas voltam na minha cabeça. Nessas horas eu tento pensar em outra coisa, cantar uma música, fazer uma oração", comentou. 

Hoje o assunto não é tabu entre P.F e suas filhas, que conversam sobre violência contra mulher. Mas um dia, quando uma de suas filhas tinha 13 anos e não conhecia a história do trauma da mãe, ela foi convidada para assistir uma encenação na escola. "Eu não sabia o conteúdo da peça e de repente a parte da minha filha era justamente uma cena com ela sendo estuprada. Foi horrível, tudo voltou com muita força. Tive uma recaída e precisei retomar as terapias."

O caso de P.F aconteceu há três décadas, mas a verdade é que apenas após casos emblemáticos, como a situação ocorrida no Rio de Janeiro com uma adolescente de 16 anos, o assunto estupro volta a ser debatido pela sociedade. O hiato entre um registro que ganha "fama" e outro faz a população pouco falar sobre o tema. O problema é que nesse meio tempo crimes deste tipo se proliferam. No Brasil, uma mulher é estuprada a cada três horas.

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Esse dado tende a parecer gritante para um tema por vezes esquecido, mas pode ser ainda pior. Essa média divulgada pelo Governo Federal diz respeito apenas às denúncias feitas através da Central de Atendimento à Mulher, pelo telefone 180. Somente em 2015, o serviço realizou 749.024 atendimentos, o que representa um crescimento de 44,74% em relação a 2014. Em relação à violência sexual, houve aumento de 154% no número de estupros registrados, chegando à média de 7,5 casos por dia.

Vítima de abuso sexual em 2007, S.L*, hoje com 26 anos, foi brincar Carnaval no Recife Antigo e na volta para casa foi abordada por um homem numa moto. Ela pensou que se tratava de um assalto, como ele mesmo disse para ela, o abusador "queria outra coisa". Quase dez anos depois, ela ainda se vê lembrando do crime que lhe transformou numa pessoa "diferente", como ela mesma define.

"Fui arrastada, apesar de ter resistido muito antes dele conseguir me levar, para um terreno baldio que tinha próximo a minha antiga casa [...]  Passei por momentos de horror. Virgem, menina sonhadora, corajosa, desbravadora, vi todas as minhas qualidades quase se desfazerem em questão de minutos. Foi triste. Tive uma arma na minha cabeça, xingamentos de ‘vadia resistente’ e um apagão na memória", relembrou a vítima que chegou a desenvolver síndrome do pânico.

Um desmaio no momento do abuso fez S.L desconhecer detalhes do crime, mas ela lembra que enquanto usava capacete para não ser identificado, o criminoso segurava uma arma com uma das mãos enquanto a outra percorria seu corpo e tentava abrir o botão de sua calça. A vítima lembra apenas de ter ouvido o barulho da moto indo embora. Procurou a polícia e registrou a tentativa de estupro. Não quis fazer exames sexológicos, porque sentia em seu íntimo não havia sido penetrada.

Após a violação de seu corpo, S.L encontrou dificuldades para andar sozinha pelas ruas, principalmente à noite. Tornou-se dependente de familiares e amigos à levassem e buscassem nas paradas dos ônibus. Tinha medo. Com o tempo e sessões de terapia alguns receios foram sendo superados, mas não esquecidos. Ela reconquistou a confiança de fazer tudo sozinha, mas não foi fácil. 

"Vez por outra esses pensamentos voltam na minha cabeça, mas hoje penso que bom que pude contar com tantas pessoas que me ajudam diariamente a superar esse fato. Não é brincadeira. Não é opcional. A vida segue e a gente tem que se permitir viver ainda mais momentos felizes e se fortalecer para todos os entraves que encontrarmos no caminho", contou S.L sobre como convive com o trauma. Convivendo com as más lembanças, S.L só conseguiu ter sua primeira relação sexual aos 21 anos, cinco anos após o abuso sexual. "Minha sexualidade ficou um pouco adormecida. Era algo em que eu não pensava."

EM PERNAMBUCO - Dados da Secretaria da Mulher de Pernambuco apontam que entre janeiro e abril deste ano, 566 mulheres foram violentadas no Estado. Isso significa que quase cinco pernambucanas são estupradas por dia, ou uma a cada cinco horas. Embora alarmantes, as estatísticas trazem uma boa notícia: esses números são 12% menores do que no mesmo período no ano passado.


Arte: Guilherme Castro/NE10

Para atender as vítimas dessa violência, o Governo do Estado, em parceria com os municípios, tem uma rede composta por 36 Centros Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, quatro casas abrigo, além de 179 organismos municipais de políticas públicas para as mulheres e 109 núcleos de estudos de gênero em escolas de referência e de ensino superior.

Ainda segundo a Secretaria da Mulher, atualmente, Pernambuco, através da Secretaria de Defesa Social do Estado (SDS), conta com dez delegacias especializadas de Violência Doméstica e Familiar. Já o Tribunal de Justiça do Estado (TJPE) possui dez varas voltadas para a violência de gênero.

* As identidades das vítimas foram preservadas

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