Comportamento

A praça pública das redes sociais: caso no Recife expõe comportamento perigoso

Mariana Dantas
Mariana Dantas
Publicado em 26/02/2016 às 17:01
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Situações de julgamento como a que ocorreu no Recife são muito comuns (imagem ilustrativa) / Foto: Edmar Melo/Acervo JC Imagem

Situações de julgamento como a que ocorreu no Recife são muito comuns (imagem ilustrativa) Foto: Edmar Melo/Acervo JC Imagem

Olhares de reprovação nunca foram empecilho para a jornalista Kiki Marinho proporcionar ao seu filho Renato, 7 anos, atividades comuns às crianças da sua idade. Renato possui um comprometimento comportamental chamado de Transtorno Opositor Desafiador (TOD), além de outras limitações associadas a uma paralisia cerebral. ?Devido à doença, a criança tem crises de agressividade, sudorese e choro compulsivo – muitas vezes em locais públicos, o que às vezes torna “os passeios complicados”, como define a própria mãe.

Na última sexta-feira (19), Kiki resolveu levar o filho para brincar em uma piscina de bolas em um shopping do Recife. Renato teve mais uma crise e começou a gritar e chorar compulsivamente. A mãe precisou agir com firmeza e seu comportamento foi interpretado como violento por alguns clientes do shopping. Com celulares em punho?,? as pessoas a acusaram de tentar espancar o filho e ameaçaram postar a sua foto no Facebook. Os vários hematomas que Renato t?e?m no corpo, provocados pelas constantes quedas que sofre devido ao transtorno, eram apontados por “dedos acusadores” como prova do crime.

Segundo a jornalista, um senhor teria tentado agredi-la fisicamente. Kiki tentou explicar a situação, mas seus argumentos foram em vão em meio à confusão, que só terminou com a chegada dos seguranças. Ela desabafou sobre o ocorrido em sua página pessoal no Facebook. A publicação, postada como pública, já tem mais de 1.800 compartilhamentos (leia a íntegra aqui).

“Não gosto de expor o meu filho, mas diante de tantas ameaças resolvi compartilhar o que aconteceu. Muitas pessoas se acham detentoras da moral e da justiça, com seus celulares e contas nas redes sociais. Ainda estou me recuperando de tudo que aconteceu, mas temo os traumas que isso pode ter provocado em mim e na minha família. Hoje meu filho perguntou se eu seria presa, porque ouviu isso das pessoas que estavam no shopping. Minha mãe de 85 anos, que estava comigo e presenciou tudo aquilo, sofreu muito e não conseguiu dormir naquele dia”, lembra a jornalista. Ela também disse que ficou surpresa com a repercussão do caso nas redes soci?ai?s. “Recebi mensagens de apoio de todo o Brasil e relatos de mães que passaram por situações parecidas. Isso me ajudou muito. Agradeço a todos”, disse.  

?A? neurologista Vanessa Van der Linden, que acompanha o menino, explica que as pessoas portadoras do TOD ?têm? um comportamento contrário às ordens e orientações dos pais. “No caso de Renato, além do transtorno, ele ainda é um criança extremamente hiperativa e com alterações motoras. Então é muito complicado lidar com as crises que podem ser muito fortes”, ressaltou a especialista. Ela ainda analisou que o grau dos “escândalos” depende da idade da criança e do comprometimento gerado pelo transtorno. 

“Existem terapias que a criança deve fazer para lidar melhor com o transtorno, além do próprio acompanhamento com medicamentos. A família também deve ser orientada por psicólogas comportamentais sobre como lidar com cada momento de fúria, até porque não é saudável viver reclamando e repreendendo a criança”, concluiu a neurologista Vanessa Van der Linden. 

?DEDOS APONTADOS - ?Para o psicólogo e professor de Teorias Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Sylvio Ferreira, a situação vivenciada por Kiki, de ser julgada por estranhos, infelizmente é inevitável. “Faz parte da nossa condição humana estabelecer juízos avaliativos sobre comportamentos alheios. E esse julgamento é fragmentado, baseado apenas na situação vivenciada no momento, e não em sua totalidade. Inicialmente, as pessoas que estavam no shopping não sabiam dos problemas daquela criança. Mas ao ouvir a mãe, não tiveram sensatez e nem maturidade para compreender a situação”, explica o psicólogo, acrescentando que o fato de fazer um pré-julgamento não dá o direito às pessoas a agredir alguém. “E se o menino realmente fosse vítima de violência pela mãe? As pessoas naquele momento não poderiam ser omissas, deveriam tentar ajudar, mas sem agredir”, destacou.  

Apontar o dedo - ou o smartphone - para o outro nunca foi tão fácil

Apontar o dedo - ou o smartphone - para o outro nunca foi tão fácilIlustração: NE10

Sobre as ameaças de postar a foto da mãe nas redes sociais, Sylvio Ferreira avalia que a mídia estabeleceu novas relações entre as pessoas, mediadas pela imagem. “Muitos passaram a considerar que o maior castigo para alguém é ter sua imagem exposta na rede. O Facebook se transformou em uma praça pública, onde as pessoas são julgadas sem razoabilidade. Não se discute?m? mais ideias, apenas condenações e absolvições”, argumenta.

CRIME – É importante lembrar aos “juízes do teclado” que expor alguém na internet e fazer acusações falsas é crime. “As leis estabelecem penas para os crimes contra a honra, de calúnia, injúria e difamação. E a internet muitas vezes é o meio usado pelo agressor para cometer esses delitos”, explica o delegado Joselito Amaral, diretor metropolitano na Polícia Civil de Pernambuco.

A pena prevista para o crime de calúnia é de seis meses a dois anos de detenção; de injúria é de três meses a um ano; e de difamação, de seis meses a um ano.  E quando alguém presencia um ato de violência contra uma criança? O delegado Joselito Amaral afirma que a melhor atitude para o cidadão que acredita estar diante de um crime em flagrante é chamar a polícia, não agir com as próprias mãos ou, no caso, com um smartphone??. 

 

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