cultura e política

Praça da República foi testemunha ocular da história de Pernambuco

Paulo Floro
Paulo Floro
Publicado em 16/08/2014 às 21:00
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Praça foi espaço de lutas, palco do abolicionismo e resistiu ao cerco dos militares.  / Foto: Marcos Michael/JC Imagem.

Praça foi espaço de lutas, palco do abolicionismo e resistiu ao cerco dos militares. Foto: Marcos Michael/JC Imagem.

A praça, por ela mesma

Vejo a movimentação em frente ao Palácio do Campo das Princesas, dezenas de pessoas, de diferentes estaturas políticas, vêm e vão desde a semana passada, quando o clima mudou completamente. O sr. Eduardo Campos, que ainda este ano era governador do Estado, morreu em terras distantes daqui, quando caiu do ar como uma bola de fogo em direção ao silêncio. Seis outras pessoas estavam com ele, três delas também filhos dessa terra: Alexandre, Marcelo, Carlos. Quem me estranha nesse estado de luto, de semblante pesado e alguma confusão, acostumou-se a vir aqui aproveitar a calmaria, a atmosfera aprazível das minhas palmeiras e do imponente baobá. Mas ninguém possui a perspectiva história que disponho: nunca me reconheço na calmaria. A emoção que quase todos os pernambucanos vivenciam esta semana, é assim que me vejo.

Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.
Palácio Friburgo, criado por Maurício de Nassau. (Autor desconhecido). - Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.
Foto: Arquivo Nacional Holandes Kaartvollectie Buitenland Leupe van het
Mapa do Recife de 1665 mostra as transformações da cidade. - Foto: Arquivo Nacional Holandes Kaartvollectie Buitenland Leupe van het
Foto:  Acervo/Fundação Joaquim Nabuco
Praça da República entre os anos 1910-1920. - Foto: Acervo/Fundação Joaquim Nabuco
Foto:  Reprodução/Recife de Antigamente/Facebook.
Cartão postal mostra vista aérea da Praça no início do século passado. - Foto: Reprodução/Recife de Antigamente/Facebook.
Foto: Acervo do Museu da Cidade do Recife.
Cartão postal da Praça da República, anos 1920. - Foto: Acervo do Museu da Cidade do Recife.
Foto: Fundação Joaquim Nabuco.
Palácio da Justiça no início do século 20. - Foto: Fundação Joaquim Nabuco.
Foto: Acervo/ Fundação Joaquim Nabuco.
O Liceu de Artes e Ofícios, parte do casario da Praça da República. - Foto: Acervo/ Fundação Joaquim Nabuco.
Foto: Reprodução/Flickr/EduardoCampos.
Vista aérea da Praça da República e do Palácio do Campo das Princesas. - Foto: Reprodução/Flickr/EduardoCampos.
Foto: Diego Nigro/JC Imagem.
Pessoas se reúnem para aguardar os corpos no acidente que matou Eduardo Campos. - Foto: Diego Nigro/JC Imagem.
Foto: Guga Matos/JC Imagem.
Mulher coloca flores em homenagem a Eduardo Campos. - Foto: Guga Matos/JC Imagem.
Foto: Luiz Pessoa/NE10.
Detalhe da estátua de Niobe, parte da coleção da Praça da República. - Foto: Luiz Pessoa/NE10.
Foto: Rodrigo Lobo/JC Imagem.
O baobá da Praça da República. - Foto: Rodrigo Lobo/JC Imagem.
Foto: Marcos Michael/JC Imagem.
O Teatro Santa Isabel, em um dos quadrantes da praça. - Foto: Marcos Michael/JC Imagem.


Esta cidade a que chamam Recife era outra quando começaram a me tomar por um espaço de convivência. Pobre e com bem menos moradores que hoje, vivíamos à sombra de Olinda, esta sim rica, cheia de si, a perfeita confluência de ouro e poder, que mais tarde seria transferido para meu solo. Foi o sr. João Maurício de Nassau-Siegen, nascido além-mar nos Países Baixos, que encontrou aqui um bom lugar para materializar seu sonho febril da cidade maurícia: o belo Palácio Friburgo foi erguido em 1642, de frente para o mar, onde antes estava a velha zona portuária da cidade. Nos fundos, o encontro dos rios Capibaribe e Beberibe. Era algo vistoso como nunca essa ilha, chamada de Antonio Vaz, tinha visto até então. Nos arredores, o sr. Nassau fez um zôo-botânico, mandando trazer diversos animais e plantas dos mais distantes rincões. Era um sonho bonito de se ver.

Vi esse palácio (e seus arredores) ser destruído inúmeras vezes a partir de então. Chamaram-no de Campo do Palácio Velho, Campo do Erário (quando a autoridade régia o usava para contar suas moedas e papéis) e após a revolta de 1817, Campo de Honra. Foi nesse período em que presenciei a época dos enforcamentos. Ainda lembro seus nomes: Antônio Henrique Rabelo, o senhor padre Antônio Pereira de Albuquerque, Amaro Coutinho, Domingos Teotônio Jorge, José de Barros Lima, a quem chamavam o "Leão Coroado", José Peregrino Xavier de Carvalho e o vigário Tenório.

A praça como os habitantes conhecem começou a tomar forma por volta de 1841 quando o governador da província de Pernambuco, o sr. Francisco do Rego Barros construiu um palácio por sobre o antigo Erário régio. O chamaram mais tarde de Conde da Boa Vista. Assim como sr. Eduardo Campos, que partiu bem jovem para a média dos políticos, o sr. Conde tinha apenas 35 anos quando assumiu o governo do Estado. Ele deu um ar mais cosmopolita ao Recife, construindo aterros para roubar terra das águas e alargar a cidade. Uma avenida criada nesses novos espaços, aqui perto, acabou sendo batizado em seu nome.

O novo edifício, de autoria do engenheiro Moraes Âncora tinha dois pavimentos, uma fachada principal com uma porta larga e outras duas que abriam de par em par, e um conjunto de janelas que rodeavam toda a estrutura. A maior mudança é que agora o prédio se virava para o leste-sul da cidade e não mais vis-a-vis ao mar. É como se quisesse ser testemunha das transformações pelas quais passava a cidade e não mais se mostrar um belo sonho aos olhos dos visitantes de fora, como queria o vaidoso Nassau.

Foi também por essa época que um dos espaços mais importantes de meu corpo arquitetônico foi erguido, o Teatro de Pernambuco, hoje com o nome de Teatro de Santa Isabel. O sr. Louis Léger Vauthier, vindo da cidade-Luz na França, foi o responsável pela construção, que começou no ano de 1841. Do chão onde só havia areia foi erguido um dos mais importantes edifícios daqui, mas não sem antes tirar a vida de vários de seus trabalhadores. Reclamavam à época que a economia de contos de réis comprometeu a segurança de todos. Até hoje me falam que é assombrado.

Outro governante da província, Luís Barbalho Moniz Fiúza, depois chamado de Barão do Bom Jardim, foi o responsável por uma das maiores transformações sofridas por mim desde que o sr. Nassau bateu os olhos nessa área. Por ocasião da visita da Sua Graça, o Imperador Dom Pedro 2º e sua mulher D. Tereza Cristina, o Palácio chamado até então apenas de "Palácio do Governo", foi transformado em Paço Imperial. A cidade estava esfuziante com as visitas ilustres, que chegaram por aqui perto do Natal de 1859. O povo cultivava um fascínio tão grande pela família real que passou a chamar o lugar de "Palácio do Campos das Princesas", em homenagem às filhas pequenas do monarca. E foi este o nome que vingou.

Praça é centro político, judiciário e cultural da cidade.

Praça é centro político, judiciário e cultural da cidade.Foto: JC Imagem.

Ficaram um mês por aqui, hospedando-se no Palácio e curtindo meu paço, decorado e limpo como nunca esteve. Sua Graça, o Imperador, homem culto e bem simpático, achou tudo muito bem arranjado. No entanto, por cautela, não lhe aprouveu se banhar no banheiro que instalaram no rio especialmente para seu uso.

Outra grande reforma sofrida se deu no ano de  1873, quando foi construído mais um pavimento na parte de trás, um novo pavimento ligado ao prédio principal, que passou a servir de residência do governador, tudo sem mexer na arquitetura frontal e lateral, praticamente idêntica até hoje. Em 1920, mais reformas, quando foi redecorado e mobiliado ricamente.

TEMPOS MODERNOS E GOLPE - Passado mais um momento de calmaria, essas areias presenciaram um novo capítulo da nossa história quando o sr. Miguel Arraes de Alencar resistiu de dentro do Palácio contra os militares que instauraram a ditadura no País. O ano era 1964 e as ruas deixaram de ser seguras para quem decidisse pensar ou agir livremente. Naquela manhã, a primeira-dama Magdalena Arraes despachou os filhos para casa dos avós e junto ao seu marido se preparou para resistir aos militares. Daqui consegui ver os canhões posicionados no Cais do Apolo, do outro lado do rio, apontados para o palácio. O exército também mantinha um cerco no entorno do prédio.

A senhora Magdalena saiu do palácio à tarde para encontrar os filhos e seu marido foi preso à noite, sendo comunicada a deflagração do golpe militar. "Deixo de renunciar ou de abandonar o mandato, porque ele está com minha pessoa e me acompanhará enquanto durar o prazo que o povo me concedeu e enquanto me for permitido viver", ouvi-o gravar, dentro do palácio. "Jurei ser digno das gloriosas tradições do povo de Pernambuco. E o povo de Pernambuco nunca veria o seu governador descer para negociar o mandato, que gloriosamente conquistou nas ruas do Recife e do interior do Estado."

A mensagem nunca chegaria às rádios ou aos jornais, já dominados pela ditadura. Após o sr. Arraes, que se recusou a entregar sua morada e seu governo e saiu na condição de prisioneiro político, o Palácio recebeu moradores bem menos populares. Paulo Pessoa Guerra, Nilo de Sousa Coelho, Eraldo Gueiros Leite, José Francisco de Moura Cavalcanti, são os nomes que aprendi ao longo de quase vinte anos e que a história batizou de forma bastante acurada de "governantes biônicos". O último líder desse período cinza que tomou essas terras foi o sr. Marco Oliveira Maciel, homem alto e de olhar distante, tido como conciliador.

Depois dele, Arraes, que havia sido expulso, retornou à justiça do povo como governador eleito, em 1987. O Recife, assim como o Brasil, varria o azedume com o frescor de um novo momento, menos violento e mais aberto. Em 1994, Arraes é novamente eleito, cumprindo seu terceiro e último mandato como governador. O vi passar o Estado para o seu maior inimigo político: o ex-aliado e ex-prefeito do Recife Jarbas Vasconcelos.

O NOVO ARRAES - Depois de oito anos do governo Jarbas, a reviravolta. Vejo o neto de Arraes, o jovem Eduardo Campos, entrar pelas portas do Palácio do Campo das Princesas como governador de Pernambuco. Foram dois mandatos. Eduardo entrou para a história como o governador eleito com o maior número de votos do País, mais de 80%, exatamente contra Jarbas Vasconcelos, que havia derrotado o Velho Arraes, em 1998. Eduardo deixou o Palácio no dia 4 de abril de 2014 para se candidatar a presidente da República.

Estátua da Praça da República, hoje espaço de lazer.

Estátua da Praça da República, hoje espaço de lazer.Foto: Luiz Pessoa/NE10.

Com tristeza, escrevemos hoje mais um capítulo com a chegada do corpo do ex-governador desta casa, que começou como um sonho de um estrangeiro no século 17 e se transformou no porto seguro da democracia que Arraes defendeu até onde pôde. Eduardo Campos alçava sonhos maiores além dessas terras, interrompidos. Será velado do lado de fora dos salões do palácio para que seja visto pelo povo, ao lado de seus companheiros.

Fontes:
Fundação Joaquim Nabuco, Instituto Miguel Arraes, Acervo histórico do Jornal do Commercio, "O Triunfo da Moral Burguesa no Recife" (editora Massangana, 2013), de Paulo Raphael Feldhues, "Roteiros do Recife" (ed. Recife, 1967), de Rocha Tadeu, InfoEscola. Agradecimentos: Jailson Lacerda dos Santos, historiador da Universidade Federal de Pernambuco.

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