A mulher e a lei

Desistir da denúncia contra violência doméstica pode levar à morte

Por Gleide Ângelo
Por Gleide Ângelo
Publicado em 03/07/2017 às 7:00
Leitura:

 / Foto: Heudes Régis/JC Imagem

Foto: Heudes Régis/JC Imagem

Caros leitores,

No artigo desta segunda (3), respondo uma pergunta que algumas vítimas da violência doméstica fazem: "Posso retirar a queixa?”. Essa pergunta ocorre porque antes da Lei Maria da Penha era comum que as mulheres registrassem o Boletim de Ocorrência e no dia seguinte voltassem à delegacia para desistir.

Com a lei, isso mudou. O artigo 16 diz que nas ações públicas condicionadas à representação, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Isso significa que a vítima não pode mais ir à delegacia para renunciar. Se o crime for de ação pública condicionada à representação, ela só pode desistir diante do juiz. Ainda assim, se o crime for de ação pública incondicionada como lesão corporal, a vítima não pode desistir nem no Judiciário.

A inclusão desse artigo foi muito importante, pois as mulheres desistiam porque eram ameaçadas ou porque ainda estavam abaladas emocionalmente. Com a necessidade de uma audiência específica para essa renúncia, será possível que o juiz, o promotor e a equipe técnica da Vara Especializada da Mulher observem de forma mais clara os motivos que fazem que a levaram à desistência.

Quando o agressor comete um crime, é importante que ele seja punido com as sanções penais específicas. Assim, ele terá a consciência das consequências de infringir a lei. Mas quando a vítima desiste e diz ao juiz que não quer mais que a investigação continue, ela corre um sério risco de vida. Essa atitude será vista pelo agressor como um perdão e ele terá a certeza da impunidade, podendo agredir novamente.

Falo isso pela experiência trágica que Marina (nome fictício) passou quando resolveu retirar a queixa. Ela disse que perdoou o companheiro e resolveu dar mais uma chance, entre diversas agressões sofridas. Marina viu a morte de perto e hoje se arrepende de ter tomado a decisão de renunciar aos seus direitos.

Marina levou dois tiros e quase morreu

Como muitas mulheres, Marina relembra sua história: "Fui agredida por oito anos. Já tinha registrado uns quatro boletins, mas sempre desisti. Mesmo só podendo desistir no Judiciário, procurava o defensor público e dizia que já tinha voltado para o meu marido, que estava tudo bem. As técnicas da Vara da Mulher conversavam comigo, mas eu sempre estava decidida a dar mais uma chance".

E foi quando Inácio (nome fictício) apontou uma arma de fogo para Marina e a ameaçou. Desesperada, ela conseguiu fugir e, mais uma vez, foi à delegacia. "Na delegacia não falei da arma de fogo porque fiquei com medo dos policiais irem até minha casa para prender Inácio. Só falei que ele tinha me ameaçado e pedi as medidas protetivas. Passei a noite na casa da minha mãe e depois de uma semana voltei para ele. Mais uma vez, fui ao juiz dizer que não queria mais que Inácio respondesse pelo crime. Também pedi para que a medida protetiva fosse cancelada”, conta.

Um mês depois da reconciliação, Marina e Inácio discutiram, ele a espancou e disparou duas vezes contra ela. Um tiro atingiu o tórax e o outro, o braço."No momento em que Inácio pegou a arma e apontou para mim, comecei a gritar pedindo que ele não me matasse. Não adiantou, ele estava com muito ódio. Tudo o que ele queria era me destruir. Só lembro que acordei com a minha mãe ao meu lado. Ela disse que eu tinha feito uma cirurgia e passado uma semana na UTI. Só saí do hospital um mês depois do crime. Vi a morte de perto", relembra.

Os olhos de Marina se encheram de lágrimas quando ela relembrou o episódio. "Nunca deveria ter desistido dos boletins que registrei. Por causa disso, quase perdi minha vida. Hoje vejo que a Lei Maria da Penha era a minha proteção e eu desprezei. Quase paguei com a minha vida”, diz. Inácio está preso, respondendo pelo crime de tentativa de feminicídio e Marina está morando com a mãe. Ela está consciente de tudo o que aconteceu e dos erros que cometeu. Superou e está seguindo em frente.

Amigas, sempre insisto em dizer que o homem agressor é muito perigoso. Inicialmente ele isola e domina a mulher para fragilizá-la. Você tem que observar as atitudes do seu parceiro desde o início do relacionamento. O homem dominador poderá cometer violência contra você. E se você já sofre violência e sempre que registra um Boletim de Ocorrência desiste, observe que há alguma coisa errada.

Se você desiste e o seu companheiro te agride novamente, significa que a violência continua. A única forma de romper com o ciclo é se afastando do agressor. O caso de Marina é o que ocorre quando a mulher não age. Cada vez que ela desistia da ocorrência, ela sofria novamente. Ela deveria ter observado que Inácio não mudou. Pelo contrário, ele continuou cada vez mais violento, chegando a tentar matá-la. Marina foi vítima de tentativa de feminicídio e hoje ela superou. Ela tem consciência de que sua atitude contribuiu para que chegasse perto da morte.

Por isso, se você registrou um boletim de ocorrência e quer desistir, não tome essa atitude precipitada. Os Centros de Referência da Mulher têm profissionais qualificados para te orientar. Procure um Centro de Referência e fale dos seus problemas. Há casos em que o agressor se arrepende e muda. Na maioria deles, no entanto, o ciclo da violência continua e a mulher corre risco de ser vítima de feminicídio. Não tome atitudes por impulso e por paixão. Tenha sabedoria e discernimento para decidir o que é melhor para você. Você precisa de equilíbrio para superar a dor e romper com o ciclo da violência. Seja forte e olhe para você. Não deixe nenhum agressor ser o dono da sua vida.

Você não está sozinha. Veja onde procurar ajuda:

- Centro de Referência Clarice Lispector – (81) 3355.3008 // 3009 // 3010

- Centro de Referência da Mulher Maristela Just - (81) 3468.2485

- Centro de Referência da Mulher Márcia Dangremon - 0800.281.2008

- Centro de Referência Maria Purcina Siqueira Souto de Atendimento à Mulher – (81) 3524.9107

- Central de Atendimento à Cidadã Pernambucana - 0800.281.8187

- Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal - 180

- Polícia - 190 (se a violência estiver ocorrendo)

Mais lidas