A mulher e a lei

Ele não vai mudar. Quem tem que mudar é você

Por Gleide Ângelo
Por Gleide Ângelo
Publicado em 13/03/2017 às 7:22
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Na coluna de hoje, Gleide  relembra um dos casos que mais chamou sua atenção nos plantões sobre violência doméstica / Foto: Diego Nigro/JC Imagem

Na coluna de hoje, Gleide relembra um dos casos que mais chamou sua atenção nos plantões sobre violência doméstica Foto: Diego Nigro/JC Imagem

Caros leitores,

No artigo de hoje falarei sobre um dos casos que mais me chamou a atenção nos plantões sobre violência doméstica. Isso ocorreu no ano de 2014. As ocorrências foram chegando normalmente, quando policiais militares entraram na delegacia com uma vítima toda lesionada e o agressor preso. Seria apenas mais um entre muitos casos que chegam às delegacias, mas não era.

Olhei para a mulher, que chamarei pelo nome de Luana (fictício)  que estava toda machucada e pedi que ela entrasse na sala e sentasse para conversarmos. Quando Luana foi entrando na sala, Walter (fictício), que estava preso pelos policiais militares olhou para ela e disse, "eu não quero mais saber de você, não vá atrás de mim". Fechei a porta e pedi que Luana sentasse. Ela chorava muito e perguntei se eram as dores das lesões pelo corpo. Luana levantou a cabeça, olhou para mim e disse, "a minha dor é pelas palavras que ele me disse agora, ele nunca mais vai voltar para mim." 

Naquele momento eu conseguia enxergar com clareza a dor que Luana estava sentido na alma, toda machucada, humilhada e desprezada. Conversei muito com ela, e tudo o que ela me pedia era que eu desse conselhos a Walter, que eu fizesse muito medo para que ele mudasse. Olhei para ela e disse, "ele não vai mudar, quem tem que mudar é você".  Ao ouvir isso, ela começou a chorar. Expliquei a Luana que Walter seria autuado em flagrante delito pela Lei Maria da Penha e arbitrada a fiança, e que ela seria encaminhada ao IML para fazer o exame de corpo de delito. Ela começou a chorar de novo, dizendo que não queria que ele fosse preso, que só queria que eu desse conselhos a ele.

Ela não queria que ele fosse preso, só queria que eu desse conselhos a ele.

Nesse momento, um policial militar bateu à porta dizendo que Walter estava perguntando quanto seria o valor da fiança, pois queria pedir o dinheiro aos parentes. Analisei o caso e disse qual seria o valor da fiança e voltei para sala onde Luana estava. Cerca de vinte minutos depois, escutamos a voz de Walter falando muito alto, com a intenção de que Luana escutasse. Essas foram as palavras de Walter que escutamos, "meu amor, sabia que você viria me ajudar.Você é que é uma mulher de verdade. Diferente daquela mulher que me denunciou  à polícia. Agora eu tenho certeza que você é a mulher certa para mim. Nunca mais vou querer olhar para essa mulher quer só quer me prejudicar, é com você que vou ficar para sempre." 

O que estava ocorrendo era que a amante de Walter tinha chegado à delegacia para pagar a fiança. Ele fez questão de falar alto, para que Luana ouvisse a conversa de dentro da sala. Mais uma vez, Luana estava sendo covardemente humilhada.  Ao ouvir aquelas palavras, Luana se descontrolou, teve uma crise nervosa e disse que queria morrer. Perguntei se ela sabia que Walter tinha um caso extraconjugal. Ela respondeu que sabia, e que o caso já existia há quatro anos, mas ele sempre prometia que iria deixar a amante.

Não me lembro de ter visto uma mulher ser tão humilhada como Luana. Fui com ela ao IML fazer o exame de corpo de delito, depois fui ao hospital para tratar os ferimentos. Expliquei para ela que Walter tinha pagado a fiança e iria responder o inquérito em liberdade, mas que era importante que ela requeresse as medidas protetivas, porque se ele descumprisse seria preso, e ela estaria protegida.  Ela olhou para mim e disse, "para que medida protetiva? Ele não quer mais saber de mim, nunca mais irá me procurar". Imediatamente eu disse,  "então ótimo, você estará em segurança. E ela respondeu, "eu não quero segurança, eu quero o amor de minha vida." 

Como delegada de polícia, diante de uma situação dessa, o que pude observar é que o problema de Luana era muito mais profundo do que as lesões corporais, eram na alma, na mente. Ela tinha uma dependência emocional muito grande e estava se sentindo culpada. Ela achava que Walter tinha ido embora com a amante por culpa dela, pelo fato de tê-lo denunciado. Naquele momento, Luana não conseguia enxergar com racionalidade, ela estava totalmente desequilibrada emocionalmente. 

Depois de todos os procedimentos concluídos, levei Luana até a residência dela,  e a convenci a procurar um Centro de Referência da Mulher para um tratamento psicológico, pois Luana estava doente e precisava de ajuda. Ela me garantiu que iria procurar ajuda, que não aguentava mais viver daquela forma. Ela já estava medicada, mais calma, e me despedi, dizendo que acreditava na mudança de vida dela, que ela tomaria uma atitude. 

Dois anos depois 

Mesmo com muito trabalho, nunca consegui esquecer o caso de Luana. Aquela humilhação que ela vivenciou, sempre passa como um filme na minha cabeça. Dois anos depois, resolvi procurar Luana para saber como estava a vida dela, o que tinha mudado dois anos depois de toda a violência que ela passou. Marcamos um encontro em um parque e cheguei mais cedo. Quando Luana chegou, não a reconheci, pois quando a encontrei na delegacia, ela estava com muitos hematomas pelo corpo. Quando olhei para aquela mulher bonita, saudável, dona de si, fiquei encantada. A Luana de hoje não reflete nada a Luana de 2014 que estava ferida, machucada e humilhada. A de hoje é segura e empoderada.

Conversamos muito e Luana me agradeceu dizendo que "aquele dia" foi o grande dia da sua mudança de vida. Ela disse que quando eu lhe entreguei o ofício de encaminhamento ao Centro de Referência, ali ela recebeu sua "carta de alforria", ela estava recebendo sua liberdade de volta. Foi com o tratamento psicossocial do Centro de Referência que ela conseguiu se fortalecer e recuperar a autoestima. Hoje, ela não consegue entender como se deixou ser tão maltratada por Walter. Ela olhou para mim e disse, "doutora, a senhora acredita que Walter foi me procurar pedindo perdão e dizendo que tinha mudado e que queria uma nova chance?. A senhora pode acreditar que eu olhei para ele e disse: eu não sei onde eu estava com a cabeça quando olhei para você. Hoje eu sou dona da minha vida e das minhas escolhas e escolhi ser feliz. Por isso, você não faz parte da nova história que estou escrevendo na minha vida. Não me procure mais, e seja feliz". 

Amigas, são histórias como a de Luana que nos faz acreditar que a mudança é uma escolha. quando a mulher quer mudar de vida, ela consegue. O que ocorre são fragilidades que precisam ser reconstruídas para que a mulher se fortaleça e se liberte. E isso está disponível para todas as mulheres vítimas de violência doméstica nos Centros de Referência. A mulher terá ajuda psicossocial e conseguirá entender onde está o problema que a torna tão frágil e vulnerável. Com o tratamento, ela se fortalecerá e conseguirá tomar a atitude de deixar o agressor e simplesmente ir embora. A decisão de ir embora é a mais difícil, porém, depois de estar equilibrada, segura e fortalecida, ela terá forças para olhar para frente e seguir. Ela vai olhar para o agressor e dizer, "chega, agora eu vou embora". 

Você não está sozinha! 
Em quais órgãos buscar ajuda:

Centro de Referência Clarice Lispector – (81)3355.3008/ 3009/ 3010
Centro de Referência da Mulher Maristela Just - (81) 3468-2485
Centro de Referência da Mulher Márcia Dangremon - 0800.281.2008
Centro de Referência Maria Purcina Siqueira Souto de Atendimento à Mulher – (81) 3524.9107
Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal - 180
Polícia - 190 (se a violência estiver ocorrendo)

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