Relato

Ano novo, vida que segue... até na funerária

Thiago Vieira
Thiago Vieira
Publicado em 30/12/2015 às 13:05
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Funerária onde Seu Salvino trabalha funciona há 15 anos / Foto: Thiago Vieira/NE10

Funerária onde Seu Salvino trabalha funciona há 15 anos Foto: Thiago Vieira/NE10

O Réveillon significa para muitos um novo começo, o início de um ciclo a ser vivido. O clima de celebração é sentido em quase todas as partes da cidade, mas há, em especial, um lugar onde pouco sentimento de felicidade é compartilhado. No Bairro de Santo Amaro, no Centro, estão reunidos o Instituto Médico Legal (IML), o Cemitério Municipal e uma grande quantidade de funerárias que funcionam o dia inteiro. Lá, conhecemos pessoas que, na virada do ano, estão prontas a lidar com quem não vai chegar a 2016. Mas nem por isso estão tristes.

O primeiro personagem estava sentado em frente à funerária onde trabalha. Seu Salvino Pereira vestia uma farda vermelha e calça jeans enquanto seu colega varria o espaço ao lado. O rosto já suado revelava que, embora ainda cedo, o senhor de 65 anos já havia trabalhado muito. A fala frenética e acelerada dificultou no começo a nossa conversa, mas depois de acostumado, fui levado a entender o dia a dia das pessoas que trabalham no segmento.

"Já estou acostumado com isso. trabalho há 30 anos e a única morte que me comoveu foi a do meu neto. As outras são apenas o meu trabalho. Claro que temos que respeitar a dor dos outros e procurar entender todo o sofrimento", disse sobre o sentimento de lidar com pessoas mortas e seus familiares.

Desapegado em relação a qualquer tipo de festa, o funcionário revela que trabalha todos os dias e que nunca se importou com isso. Curioso pela extrema carga horária de seu Salvino, perguntei se ele não dormia. Ele riu, e disse que apenas cochilava enquanto não tinha nenhum serviço para fazer. 

"Tem dia que acontece de o movimento está maior, de ter mais serviço para gente. Quando não acontece muita coisa a gente aproveita para descansar por aqui mesmo ou vai em casa enquanto espera alguém chamar", disse ele, que mora nas imediações do local de trabalho. 

O movimento no segmento não tem muito como prever. Ainda que com grande incidência de acidentes nas festividades de fim de ano, Seu Salvino indicou que, por algum motivo que ele desconhece, a Quinta-feira Santa sempre é um dia de "grande movimento".

Trabalhar diretamente com um corpo morto não é tão simples para algumas pessoas. O funcionário revela que sempre encarou com muita naturalidade o seu serviço desde que iniciou."Lidar com pessoas mortas não tem problema nenhum. O difícil é lidar com pessoas vivas" brincou.

Jean Maia trabalha há 5 anos no IML

Jean Maia trabalha há 5 anos no IMLFoto: Thiago Vieira/NE10

Essa tranquilidade em conviver com corpos sem vida e famílias enlutadas é partilhada pela grande maioria dos que estão no ambiente. No quarteirão paralelo, na esquina, fica o Instituto de Medicina Legal (IML) que atua diretamente com os funerários. Jean Maia, maqueiro de 34 anos, também revela uma grande intensidade no trabalho e um pouco de incômodo por parte da família.

"Meu marido não gosta muito. Ele entende, mas às vezes fica incomodado por não estar comigo nessas datas especiais. Para mim é mais tranquilo", disse Jean, casado há 5 anos.

Contrariando a imagem de um lugar triste e pacato, as pessoas que vivem nas imediações do cemitério, lidando com o sofrimento e o fim da vida, vivem uma rotina de amizade e muita descontração.

A quem visita, sempre por motivos delicados e indesejáveis, a morte pode significar o fim. Aos que ali vivem e trabalham, a morte é o grande meio de vida. Talvez por isso seja encarado de forma tão natural. Até mesmo no Réveillon. 

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